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quarta-feira, 27 de novembro de 2013

RESENHA DO LIVRO: "A HISTÓRIA CULTURAL - ENTRE PRÁTICAS E REPRESENTAÇÕES" DE ROGER CHARTIER

O historiador francês Roger Chartier já analisou as instituições de ensino e sociabilidades intelectuais, a marginalidade, a festa e a morte. Outros trabalhos do autor versam sobre a história da leitura, a história do livro e a cultura política. Desta feita, o historiador vem buscando analisar um conjunto de práticas e objetos culturais, dando uma coloração diferente à história social. Evidentemente, suas prolíferas reflexões emanam do seu rico empirismo acadêmico e do seu itinerário editorial, bem como da sua trajetória historiográfica, uma vez que o mesmo conheceu a fundo esses espaços, esses processos e práticas.

Na obra que se quer resenhada, A História Cultural, Chartier reflete sobre o ofício do historiador. Para tal, o autor examina as condições de produção desses agentes, bem como da prática historiográfica como um todo. Ademais, o historiador avalia os conceitos e as formas discursivas que fundam essa prática. O livro se compõe de oito ensaios. Tais estudos foram elaborados entre 1982 e 1986, e constituem-se como resposta à insatisfação frente à história cultural francesa dos efervescentes anos 1960 e 70. No período em questão, a ciência histórica começava a assumir diversas formas, sobretudo, devido aos desafios lançados pelas novas disciplinas que obrigaram tal ciência a rever seus objetos e suas certezas metodológicas. Entretanto, décadas anteriores a própria historiografia dos Annales, sobretudo a partir dos anos 30, já havia apontado a eminência do estudo desses objetos, bem como a aplicação de outros métodos.

A tensão fundamental que percorre a obra se desdobra em duas vertentes: de um lado há um grande esforço em questionar a idéia de fonte enquanto testemunho de uma realidade, passando esta a ser concebida como mero instrumento de mediação. Assim, a realidade seria analisada através das suas representações, sendo as mesmas consideradas como realidades de múltiplos sentidos. Por outro lado, Chartier tenta nos mostrar que há práticas sociais que não podem ser reduzidas a “representações”, pois as mesmas possuem uma lógica autônoma. Daí ser importante no pensamento chartierniano o conceito-chave de leitura, visto que existe no trabalho em questão uma permanente interrogação sobre a possibilidade de ir do discurso ao fato, por isso a idéia de considerar as representações enquanto portadoras de diferentes sentidos.

Chartier alerta-nos que a história cultural, assim definida, concilia novos domínios de investigação com a fidelidade aos postulados da história social, buscando uma nova legitimidade científica, tendo como substrato as aquisições intelectuais que fortaleceu o domínio institucional de outrora. Desta forma, o historiador francês, na sua História Cultural, pretende mostrar uma outra maneira de pensar as evoluções e oposições intelectuais. Para tal, o autor traça as determinações objetivas presentes nos habitus disciplinares. Assim, o objeto da história cultural, segundo o autor, é identificar o modo como em diferentes tempos e espaços uma determinada realidade social é construída, pensada e dada a ler. Daí ser fácil presumir que uma tarefa deste tipo supõe vários caminhos. O primeiro deles diz respeito às delimitações, classificações e divisões que organizam a apreensão do mundo social. Tais apreensões são variáveis consoantes as classes sociais e aos meios intelectuais. Deste modo, embora aspirem à universalidade de um diagnóstico fundado na razão, as representações do mundo social são sempre determinadas pelos interesses de grupo que as forjam. Assim, as percepções do social não são de forma alguma discursos neutros. Bem como assinala Chartier, as lutas de representações têm tanta importância como as lutas econômicas para compreender os mecanismos pelos quais um grupo impõe, ou tenta impor, a sua concepção de mundo social, seus valores e seus domínios.

Com efeito, observa-se na obra do autor um grande esforço em acabar com as falsas polarizações entre a objetividade das estruturas e a subjetividade das representações. Desta forma, a história cultural do social deve tomar por objetos as suas formas e seus motivos, isto é, suas representações do mundo social. Logo, para nomear tais motivos devemos concebê-los como simbólicos: os signos, os atos, os objetos, as figuras intelectuais e/ou as representações coletivas. Nesse enfoque, forma simbólica, de acordo com o idealismo crítico, seriam todas as categorias e todos os processos que constroem o mundo como representação. Daí podemos depreender que o conceito de símbolo é a extensão máxima do conceito de representação, num sentido mais particular e historicamente mais determinado.

De acordo com Chartier, a pertinência operatória do conceito derepresentação resulta de duas ordens de razão. Conceito esse bem presente nas sociedades de Antigo Regime, ele manifesta a noção de duas famílias de sentido: de um lado a representação como dando a ver algo ausente (uma distância radical entre aquilo que representa e o que é representado) e por outro lado a representação como exibição de uma presença (como a apresentação pública de algo ou alguém). Outros conceitos são apresentados num registro diferente, como o da relação simbólica. Bem como reconhece Chartier, “uma relação compreensível é, então, postulada entre o signo visível e o referente por ele significado – o que não quer dizer que seja necessariamente estável e unívoca”.

O autor alerta-nos que as sociedades do Ancien Régime souberam explorar esses conjuntos simbólicos, com intuito de forjarem um poder real. Assim, Chartier elenca uma série desses símbolos usados pelos magistrados para criar essa representação: as vestes vermelhas, os palácios, as flores de lis. Daí ser constatável que a relação de representação é assim confundida pela ação da imaginação. Parafraseando o autor, “a representação transforma-se em máquina de fabrico de respeito e de submissão, num instrumento que produz constrangimento interiorizado”. Ou seja, uma espécie de poder exercido por meios das dissimulações. Desta feita, de acordo com Chartier, a história cultural sendo trabalhada dessa forma permite que se regresse utilmente ao social, afastando-se da dependência da história social clássica.

Na introdução da obra, tal como já preconizara Paul Ricoeur, Roger Chartier assinala que as modalidades do agir e do pensar devem ser sempre remetidas para os laços de interdependência que regulam as relações entre os indivíduos. Nesse sentido, tais laços são moldados, de diferentes maneiras em diferentes situações, pelas estruturas do poder. Logo, é a partir dessa concepção que Chartier analisará a história da leitura. Nesse estudo, o autor mostrar que cada leitor se apropria da obra de forma distinta. Desta feita, a noção de apropriação, segundo Chartier, pode ser reformulada e colocada no centro de uma abordagem de história cultural que se prende com práticas diferenciadas, com utilizações contrastadas. O historiador assinala que a apropriação sendo concebida dessa forma tem por objetivo uma história social das interpretações, remetidas para as suas determinações fundamentais (que são sociais, institucionais, culturais) e inscritas nas práticas específicas que as produzem.

Nesse enfoque, o autor constrói tal obra a partir de três noções: representação, prática e apropriação. Vale ressaltar que a teorização desses conceitos só veio à tona devido a um diálogo constante entre a confrontação com o documento e à elucidação metodológica. Roger Chartier observa que tais demarcações e modelos constituem o objeto de uma história cultural que leva a repensar completamente a relação tradicional postulada entre o social, que ambicionava identificar o real. Dessa forma, esta história cultural deve ser entendida como o estudo dos processos com os quais se constrói um sentido. Para isso, tem-se que ter em conta as especificidades do espaço próprio das práticas culturais. Somente assim é possível compreender as práticas, “complexas, múltiplas, diferenciadas, que constroem o mundo como representação”.

*Victor Martins é professor do curso de licenciatura em História da UNIBAN/ANHANGUERA da unidade de Campo Limpo e pesquisador da Cinemateca Brasileira. Postado há 13th September 2012 por HISTÓRIA EM PERSPECTIVA

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